terça-feira, 31 de agosto de 2010

Sala de leitura



Faz calor. Escancara a janela para o verão imaginando que fosse o mar ali adiante e não a lateral do prédio vizinho com suas nuvens pretas de umidade. Tira a camisa, acende um cigarro. O cigarro mata a fome, a sede e ainda tira o amargo da boca.
Corre para sua velha cadeira de fios de plástico tecidos. Uma raridade. Poucos ainda têm uma dessas cadeiras que reinaram nas varandas da classe média e das casas do interior e hoje foram substituídas por aquelas horrendas cadeiras de plástico branco de beira de piscina. Ok... elas são mais leves e fáceis de carregar, mas carecem do charme pantaleônico dos fios de plástico colorido, que ainda deixam tatuagens estranhas na pele dos usuários.
Alisa o braço rugoso da cadeira. Talvez seja seu móvel preferido dentre os poucos do apartamento. É fundamental. Ali, ele vive os momentos de sua vida que realmente considera importantes. É sua cadeira de leitura. Seu lugar predileto no mundo.
Atualmente encara ao mesmo tempo o último best-seller do Paulo Coelho, o “Tratado das Correções do Intelecto” de Espinosa e “Esaú e Jacó”, de Machado de Assis. O do Paulo Coelho é preciso ler. Afinal, é preciso conhecer o que todo mundo está lendo. Já achou Paulo Coelho uma bosta. Odiou “O Alquimista”. Tem um conto do Borges que tem a mesma história com muito menos páginas e mais interessante. Hoje é um leitor resignado. Paulo Coelho é legal de ler cagando. É como ver novela ou assistir jogo de futebol. Ridículo, mas prende a atenção.
Já o Espinosa é sua terceira aventura pela filosofia. Boiou completamente lendo Kant e Locke. Começou agora o “Tratado” e já está achando um porre. Mas o grande problema é mesmo o final das férias. Na próxima segunda começa a trabalhar novamente. Menos tempo para ler. Chega cansado, os olhos ardendo e as costas doendo de passar o dia em frente ao computador. Lê pouco durante a semana, menos do que gostaria.
Olha pela janela a cidade iluminada. Gosta daquela vista. É a melhor do apartamento. Faz muito calor. Seus planos para o verão incluem ler vários Eça que estão faltando. É uma vergonha, mas não leu “O Primo Basílio”. Mas não será o verão perfeito. Ele sabe que é nessa época do ano que as pessoas casadas e com filhos tiram férias. E toca ele pegar serviço de outras pessoas no escritório. De uma maneira geral, o movimento diminui durante as férias, mas como poucos funcionários permanecem trabalhando, o volume de serviço para os que ficam é grande.
Um dia preciso arrumar uma solução para isso, ele pensa. Não quer mais trabalhar. Tem milhares de coisas para ler e daqui há três meses fará 47 anos. É pouco tempo para ler tudo o que deseja. O ideal era poder ficar em casa o dia todo. Mas é preciso grana. Pra ter grana é preciso estourar as costas e os olhos naquela merda de escritório. Precisava de casa, comida, roupa lavada e verba indeterminada para os livros. Mas comprar é o menor dos problemas. Na fila para serem lidos estão centenas de livros, o que ele precisa é tempo e sossego.
Talvez se virasse monge. Mas aí seria obrigado a ler somente os textos de alguma seita. Parece absurdo que alguma ordem religiosa libere a leitura de D.H. Lawrence, Jean Genet ou Henry Miller. E são autores que é preciso ler.
Da loteria já desistiu. Fez a tal da “fezinha” semanalmente por mais de quinze anos. Algum político safado deve manipular essa merda toda, afinal tem muita grana envolvida. Ganhar na loteria seria perfeito, já que não nasceu filho de rico. Colocaria o dinheiro todo num banco e só iria tirando o mínimo necessário pra sobreviver. Contas no débito automático, marmita entregue em casa e paga por mês, sairia o mínimo possível de casa. Aí sim, seria somente ler.

Parte 2 - Depoimento

que estava voltando de uma livraria e ia em direção ao seu carro, estacionado a duas quadras dali; que não conhecia a vítima; observou que a vítima parecia estar embriagada, pois falava sozinha e lavava o rosto e os braços na enxurrada; que em momento algum foi abordado ou molestado pela vítima, achando até que não foi visto por ela; que passou por ela a caminho do carro e achou que a vítima era um indigente; que foi até seu carro, estacionado a aproximadamente cem metros dali, onde guardou os livros que havia comprado e pegou um cano de ferro que trazia no porta-malas do carro; que obteve o cano de ferro na demolição da casa de sua avó; que o instrumento está em sua posse há aproximadamente dois meses e meio; que se aproximou da vítima sem que ela percebesse; que antes disso, examinou a região e lhe pareceu que não havia ninguém olhando; que o local é mal iluminado e pelo fato da vítima estar próxima de uma árvore, o local estava ainda mais escuro; que a vítima não percebeu sua aproximação; que se posicionou atrás da vítima que permanecia agachada com as mãos mergulhadas na água da enxurrada; que desferiu dois golpes na cabeça da vítima utilizando-se do cano de ferro; que o primeiro golpe foi dado com bastante força e o segundo acertou de maneira menos intensa em razão do movimento gerado pelo primeiro golpe; que a vítima caiu na enxurrada sem emitir qualquer som; que o depoente ficou muito nervoso e foi para seu carro onde ficou sentado esperando a chegada da polícia; que não sabe quem viu a ação, mas acredita que tenha sido algum porteiro ou morador dos prédios da rua; que não se certificou se a vítima veio a óbito ou não; que sua intenção não era cometer homicídio, mas sim cometer algum crime, mesmo que fosse tentativa de homicídio ou lesão corporal; que sua intenção é apenas ficar preso; o depoente acredita que, por ter curso superior, poderá ficar numa cela especial e aí vai ter tempo para ler todos os seus livros; que, em razão do seu trabalho no escritório de contabilidade do tio não tem tempo de ler tanto quanto gostaria; que gosta de se imaginar vivendo a vida dos personagens; que assim que for preso pretende ler alguns livros de Eça de Queirós que ainda não leu; que também pretende reler a obra de outros autores que gosta como Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto, Cervantes e outros; que não se inspirou em nenhum livro em especial para cometer o crime; que não está arrependido; o depoente perguntou ao delegado quando poderá receber seus livros na cadeia e que lhe foi respondido que ele não tem o direito de perguntar nada durante o interrogatório.

6 comentários:

Rodrigo Roll disse...

Gostei realmente desse texto... dessa abordagem sutil do cotidiano.
Abraço!

Aline disse...

Maravilhoso! Essa história vai longe, pode crer!

Beijos

Anônimo disse...

Cara, reli mais uma vez a segunda parte, mas ainda nao comparei com a outra publicada antes. Você chegou a mudar algumas coisas, nao ? Desculpe a pergunta assim, sem checar antes, mas está muito bom! Parabéns. E faco coro com a Aline e creio que a coisa vai longe. Um grande abraco.
Pedro.

POBRE MEU BLOG disse...

Valeu Rodrigo!

Aline, você não vale! rsss

Pedro. Mudei muito pouco. A novidade foi a primeira parte mesmo.

Abraços

Alien disse...

Pô! Como é que não vale?!? Eu acompanhei o processo desde o embrião da sua idéia para este texto e tô achando que éstá dando certo! Posso?!? Rs...
Aliás, beijos...

R.R disse...

Belissimo conto! Adorei ler!
Apausos!