terça-feira, 23 de dezembro de 2014

MÚSICA BRASILEIRA: O QUE OUVI DE MELHOR EM 2014

Juntando toda a minha cara de pau, resolvi escrever sobre o que ouvi de mais interessante no ano. Não sou crítico musical, não tenho tempo nem grana para acompanhar tudo o que sai. Mas das coisas que chegaram até mim, lançadas em 2014, vou dizer quais foram as mais legais. Se alguém tiver saco pra ler, são elas: 1 – JUÇARA MARÇAL Na verdade, esse foi o disco que me motivou a escrever o texto. É um trabalho que te faz renovar a crença que a música brasileira é muito foda. O repertório e a voz são incríveis. Mas o que pega forte são as ambiências, as guitarras guinchando e criando texturas interessantes, num contraponto com belo canto de Juçara, digna herdeira da tradição das grandes cantoras brasileiras. “Encarnado” consegue ser denso e delicado, musculoso e descarnado (ouça e concorde com o trocadilho). Há distorção e beleza de sobra. Basta ouvir “Velho Amarelo”, que abre o disco, para entender qual será a pegada. A faixa consegue remeter o ouvinte, ao mesmo tempo, a Velvet Underground e a Tom Zé. Uma paulada! Só para citar algumas faixas, há a saborosa vingança de “Damião”, de Douglas Germano, com um arranjo primoroso. “Queimando a Língua” e a perturbadora “Ciranda do Aborto” também são fantásticas. “Encarnado” consagra um grupo de músicos incríveis, do qual fazem parte Kiko Dinucci, Douglas Germano, Rodrigo Campos, Thiago França, Romulo Fróes, além de Juçara. Seus trabalhos solo ou em seus diversos grupos (Metá Metá, Passo Elétrico, Bando Afromacarrônico, Duo Moviola, Sambanzo), constituem (de longe, de muito longe mesmo) o que há de mais interessante na música brasileira atual. “Encarnado” e outros trabalhos dessa turma fazem o contraponto acre e necessário a uma certa “fofice”, para não dizer “bundamolice indie”, muito presente na tal de nova MPB. Da mesma forma, são antídotos aos talentosos reprodutores da receita djavanica/ leninista/caetânica que começa a colocar a MPB de novo nas trilhas das novelas globais. A música de Dinucci, Marçal e Cia. nunca é inofensiva. Além disso, o grupo trabalha com referências incríveis de coisas que estavam meio esquecidas ou subvalorizadas, como o samba paulista de Geraldo Filme, Toniquinho Batuqueiro, Adoniran e outros; a vanguarda paulistana de Arrigo e Itamar; o candomblé em toda a sua exuberância e mistério; experimentalismos a la Walter Franco e Tom Zé; ecos de hip hop, lendas urbanas, boca-do-lixo, além das guitarras e violas/ rabecas velvetianas que estão no tutano do osso que certos indies não ousam chupar. Há canções com narrativas que remetem a João Antonio, Plínio Marcos e, ouso, dizer, às histórias dramáticas das modas de viola. Confiram “João Carranca” e a estupenda “Partida em Arujá”, gravada por Juçara Marçal no disco “Na Boca dos Outros” de Kiko Dinucci. Por tudo isso, ouso dizer que esse grupo de artistas é a coisa mais interessante que acontece na música brasileira desde Itamar/Arrigo, com menção honrosa para o cometa Chico Science. Dessa turma, além de “Encarnado”, recomendo tudo. Na minha lista também vão: 2 – SWAMI JR. E MARCELO PRETTO – A CARNE DAS CANÇÕES Swami Jr. é um criador de belezas. Seja como produtor, arranjador, músico acompanhante ou nos seus trabalhos solos, os ótimos “Outra Praia” e “Mundos e Fundos”, ele sempre oferece algo especial aos ouvintes. Marcelo Pretto é um dos maiores cantores do Brasil. Sua voz enriquece os trabalhos de grupos como A Barca e Barbatuques e discos de amigos como Chico Saraiva, Kiko Dinucci e Carlos Careqa. Só por reunir uma coleção de canções com a voz de Marcelo, este “A Carne das Canções” já se torna um lançamento essencial. Mas o encontro desses dois grande artistas é mais que isso. Um registro nada óbvio e de muito bom gosto de canções pouco conhecidas e compositores interessantíssimos como os citados Dinucci e Saraiva, além de Douglas Germano, Rodrigo Campos, Arrigo Barnabé e o incrível Walter Freitas. Há momentos realmente especiais (“Ratapaiapatabarreno”, “Pixaim”, “Abre a Casa”). Um disco que mostra-se mais envolvente a cada audição. 3- ESTRELINSKI E OS PAULERA - LEMINSKANÇÕES A reunião das canções compostas por Paulo Leminski pode agradar a muito mais gente que apenas os fãs do trabalho do poeta. Musicalmente, o disco é simples e direto. Transborda leveza, bom humor e é agradável de ouvir. Há muitas canções legais e é emocionante ouvir o próprio Leminski soltando a voz em “Valeu”. 4- CRIOLO – CONVOQUE SEU BUDA Confesso que o hype todo, o lance messiânico e as camisetas da Gaviões da Fiel me afastaram do “fator Criolo”. Passei conscientemente batido pelo seu disco anterior “Nó na Orelha”. Só quis saber qual é a do rapper-hippie quando vi que ele tinha entre seus colaboradores e parceiros os já citados Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Juçara Marçal e Thiago França. Gostei de “Convoque seu Buda”. Tem faixas bem legais como “Cartão de Visitas”, o sambinha “Fermento pra Massa”, “Esquiva da Esgrima” e uma poderosa versão de Padê Onã, de Kiko Dinucci e Douglas Germano, rebatizada de “Fio de Prumo”, com a participação sempre foda de Juçara Marçal. Criolo não é o gênio alardeado por aí. E de modo algum é um embuste como o hype e o beija-mão dos medalhões da MPB poderiam fazer supor. É um artista jovem, carismático, com um texto muito próprio e com dois discos pop extremamente bem feitos na praça. Uma carreira para se acompanhar. 5 – JAIME ALEM – MEU RELICÁRIO Depois de um belo disco instrumental de viola caipira o “maestrão” Jaime Alem aposta num coquetel musical que consegue conjugar delicadeza interiorana e sofisticação. Há belos temas instrumentais, mas o que mais me chama atenção no disco é o poderoso casamento das vozes de Jaime (adoro ele cantando) e da cantora Nair Cândia, que confere brilho especial às lindas melodias compostas por Alem. Confira “Meu Relicário”, “Sua Presença Querida” e “Lua e Vento”. Mesmo afastado da cantora Maria Bethânia, com quem seu trabalho sempre será associado, o maestro mostra em “Meu Relicário” que sua música está mais viva e bonita do que nunca. Menção Curiosa: HUMBERTO GESSINGER – INSULAR Nunca em minha vida me imaginei ouvindo um disco solo do líder dos Engenheiros do Hawai, embora eu tenha gostado do disco A Revolta dos Dândis, lá nos longínquos anos 80. Mas “Insular”, lançado no final de 2013, caiu nas minhas mãos e surpreendeu. É um disco de rock simples, honesto, com um punhado de boas canções. Evidentemente, Gessinger não é o messias que os fãs dos Engenheiros imaginam. Mas está muito longe de ser o lixo pintado pela crítica musical. O cara tem lá o jeitão dele, que me parece autêntico, comete algumas boas letras e me arrisco a dizer que “Insular” é melhor do que 90% do que produzem as bandinhas de rock da atualidade. Acha que estou ficando louco? Então crie coragem e ouça “Sua Graça”, “Essas Vidas da Gente” e “Segura a Onda Dorian Grey”, com participação do saudoso Nico Nicolaiewski, do Tangos e Tragédias