sábado, 1 de novembro de 2008

Depoimento

que estava voltando de uma livraria e ia em direção ao seu carro, estacionado a duas quadras dali; que não conhecia a vítima; observou que a vítima parecia estar embriagada, pois falava sozinha e lavava o rosto e os braços na enxurrada; que em momento algum foi abordado ou molestado pela vítima, achando até que não foi visto por ela; que passou por ela a caminho do carro e achou que a vítima era um indigente, bêbado e abandonado pela rua; que foi até seu carro, estacionado a aproximadamente cem metros dali, onde guardou os livros que havia comprado e pegou um cano de ferro que trazia no porta-malas do carro; que obteve o cano de ferro na demolição da casa de sua avó; que o instrumento está em sua posse há aproximadamente dois meses e meio; que se aproximou da vítima sem que ela percebesse; que antes disso, examinou a região e lhe pareceu que não havia ninguém olhando; que o local é mal iluminado e pelo fato da vítima estar próxima de uma árvore, o local estava ainda mais escuro; que a vítima não percebeu sua aproximação; que se posicionou atrás da vítima que permanecia agachada com as mãos mergulhadas na água da enxurrada; que desferiu dois golpes na cabeça da vítima utilizando-se do cano de ferro; que o primeiro golpe foi dado com bastante força e o segundo acertou de maneira menos intensa em razão do movimento gerado pelo primeiro golpe; que a vítima caiu na enxurrada sem emitir qualquer som; que o depoente ficou muito nervoso e foi para seu carro onde ficou sentado esperando a chegada da polícia; que não sabe quem viu a ação, mas acredita que tenha sido algum porteiro ou morador dos prédios da rua; que não se certificou se a vítima veio a óbito ou não; que sua intenção não era cometer homicídio, mas sim cometer algum crime, mesmo que fosse tentativa de homicídio ou lesão corporal; que sua intenção é apenas ficar preso; o depoente acredita que, por ter curso superior, poderá ficar numa cela especial e aí vai ter tempo para ler todos os seus livros; que, em razão do seu trabalho no escritório de contabilidade do tio não tem tempo de ler tanto quanto gostaria; que gosta de se imaginar vivendo a vida dos personagens; que assim que for preso pretende ler alguns livros de Eça de Queirós que ainda não leu; que também pretende reler a obra de Guimarães Rosa e Machado de Assis outros autores que gosta como Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto, Cervantes e outros; que não se inspirou em nenhum livro em especial para cometer o crime; que adora a poesia de Drummond, Manuel Bandeira e Fernando Pessoa; que não está arrependido; o depoente perguntou ao delegado quando poderá receber seus livros na cadeia; que lhe foi respondido que ele não tem o direito de perguntar nada durante o interrogatório.

2 comentários:

Pedro Reis Lima disse...

Muito bom. Fudido. Pedro.

Anônimo disse...

Abaixo a angústia criativa! Sei que tem muito mais de onde veio este! Aliás, muito bom.

Besos calientes, Aline