sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Sobre domingos e catecismos

Hoje, eu estava sozinho num café, uma menina passou e não me olhou. Imediatamente passei a questionar as virtudes que os cristãos dizem estar ligadas à pobreza. É claro que se eu fosse rico ela me olharia. Mas como ela saberia da minha riqueza apenas me olhando largado numa mesa do café? Não tenho a menor idéia, mas ela saberia. Eu sempre sei que alguém tem grana. Pelas roupas, pelos gestos, o queixo alto. E, lógico, se eu fosse rico não estaria num café tão furreba.
Amanhã é segunda e a merda continua. Parece que meu sono nunca é suficiente e acordo sempre praguejando. Saio pra trabalhar e o frio das manhãs quase melhora meu humor.
Meia hora de ônibus e estou no escritório onde a merda continua. Penso em largar tudo e ser faquir na Praça da Sé, como num filme do Zé do Caixão que vi dia desses. Já até imaginei alguns números originais, afinal, cama de pregos já não impressiona ninguém. Pensei em arrancar meus dentes sem anestesia. Depois de estar totalmente banguela eu morderia uma gilete. As lâminas penetrando nas gengivas vazias de dentes. Um sucesso absoluto.
O pior desses dias é não ter a quem procurar. Estou vulnerável. Chego a ter dó da próxima mulher que me der bola, se houver alguma. Eu me agarrarei a suas pernas e não a deixarei andar sem mim. Me apaixonarei e serei o cara mais pegajoso da face da terra.
Provavelmente eu a seqüestre e leve para uma cabana em um lugar ermo. E ficaremos trepando no tapete da sala de manhã até a noite. E só comeremos chicletes e só beberemos nosso suor e só ouviremos os malditos pássaros e nossos gemidos. Não falaremos.
Isso é o que eu fico imaginando e me tira o sono. Na verdade, falta grana, falta saco, televisão me aborrece e enjoei dos meus discos. Não leio mais jornal, mas também não consigo ficar totalmente indiferente. Tento me convencer de que tudo é normal hoje em dia. As chacinas, as cagadas da polícia, as guerras, os políticos e as celebridades. Nem sempre funciona. Um restinho de raiva insiste em deixar um amargor na boca. E, para piorar, a garota gordinha do prédio da frente não trepa nem se troca mais de janela aberta desde que o outono chegou.
O pior é o que chamo de efeito montanha-russa. As oscilações. Ou seja, os dias em que alguma coisa em mim resolve soterrar esse tédio. Aí sinto desejos incontroláveis de mudar. Ser demoníaco, sensual, preguiçoso, arrogante, irônico e exibicionista. Uma vontade de ser expulso do Jardim do Éden ou de, pelo menos, dar um peido barulhento em frente da minha chefe chique com seus lenços coloridos no pescoço.
É tipo uma vontade de ser jovem e inconsequente para sempre. Um James Dean capaz de dirigir melhor. Afinal, não quero morrer cedo. Prefiro ficar num pedestal, adorado em vida com meus cabelos dourados, olhos azuis, pele clara, boca vermelha. Uma espécie de Helmut Berger fazendo papel de amante da condessa louca e sanguinária de cabelos verdes e corpo perfeito.
Queria andar na chuva, matar dragões de neon e comer com os pés em cima da mesa. Tudo para horrorizar os homens de virtude, as mulheres de berço e as meninas de família. Queria acumular segredos inconfessáveis, daqueles capazes de terminar amizades. Fazer e falar coisas absurdas. Ser poeta sem precisar das palavras. Ser Alexandre o grande. Ser um faraó. Temido, mítico, aclamado. Queria ser o Lou Reed. Um fauno.
Mas a vida é estranha, os muros são altos e eu viajo demais. Daí esse sufoco passa e não faço porra nenhuma. A montanha russa volta para o trecho mais seguro e eu para meu estado normal de inanição. Não sorrio, não agradeço, quero que se fodam.
As manhãs de domingo são mais interessantes. Durmo um pouco mais. O barulho do trânsito é menor. Acordo e vou comer pastel na feira, onde a garotinha japonesa sorri quando eu peço a pimenta. Talvez ela ria da minha cara de sono. Talvez ela ria pra todo mundo.
Quando vou à feira passo em frente à igreja do bairro e tem sempre muita gente saindo da missa. Muitas ovelhinhas agradecendo a Deus ou pedindo coisas. Deve ser enfadonho para Deus, enquanto coça seu saco celeste, ficar ouvindo as ladainhas e os hinos dos carolas “anunciando o amor que vem do céu e na terra se faz alma e cor”. Havia um hino assim quando eu era criança e fiz catecismo.
Depois aprendi um sentido mais interessante que os moleques davam à palavra catecismo. Era como a molecada da rua chamava as revistinhas de sacanagem. Aquelas pequenininhas, tipo fotonovelas. “Agora, Elvira... goza junto comigo”. Lembro de uma dessas em que a mulher se chamava Elvira. Juro por Deus e por todos os catecismos. Era uma loira americana, dessas que os carolas insultariam e apedrejariam. Porra... e chamada Elvira!
Também sempre compro laranjas na feira e mais algumas frutas. Já as tardes de domingo são horríveis. Ouvindo futebol no rádio, assistindo algum filme alugado e chupando laranjas. A sensação de tempo perdido é indescritível e insuportável.
E sigo vegetando até a madrugada. Até a hora dos filmes ruins e dos programas que ninguém vê. De vez em quando, para pegar no sono, fico lendo um velho dicionário de bolso que era da minha mãe. Às vezes até me divirto assim.
Aprendo palavras inúteis como “arconte”, o magistrado na Grécia antiga. Descubro que “beiju” é um bolinho de mandioca; que “mangabeira” é uma árvore frutífera. Também li que “sicário” é um assassino assalariado. Taí um emprego tão bom quanto o de faquir na Praça da Sé.
Agora abro outra página do dicionário e leio os significados da palavra “negror”. Esta lá: 1. negrume; 2. escuridão, negrura, negridão; 3. nevoeiro espesso; 4. tristeza, melancolia.
Apago a luz e, mais uma vez, não durmo com os anjos.

8 comentários:

Anônimo disse...

O texto está ótimo, tem ritmo e é concentrado, nao se dispersa por aí.
Muito bom meu chapa.
Um grande abraco.

Anônimo disse...

Valeu mermãozinho. Manda notícias. Tá sumido...

Anônimo disse...

Falaê, Sérgio!

Já tinha passado por aqui por conta do mesmo Marcelo do NOIA.
Fiquei muito feliz por tua visita ao Brogado e pelo link mais ainda.
Se me permitir também linkarei teu blog ao meu, ou sei lá como se diz essas coisas mudernas...
Gostei muito do seu blog e, confesso, ainda não tive chance de ouvir teu programa. Também tenho adoração por músicas e fuço internet adentro afora e afundo em novas descobertas. A música é vasta e linda como as manhãs na cuesta botucatuense.
Um grande abraço,
Ednelson

Anônimo disse...

Valeu cara!
Seja bem vindo sempre.
Abraço

Anônimo disse...

Shitake:

Phallos citru. Conheço desde phallos nervosu. O pensamento voa. Já, a palavra, gosta de ir vendo a paisagem.É como correr sózinho numa fog madrugada.

Anônimo disse...

O ritmo do texto é envolvente, cinematográfico. Me lembrou filmes que o personagem conta em off sua história.
Adorei os trechos confessionais e o clima underground.
O lance da gilete é genial, precisamos ver isso um dia.
Amplexos celestiais

Anônimo disse...

Porra velho, o lance da gilete é uma velha idéia sua. Eu só roubei.
Saravá!

Anônimo disse...

Ficou muito bom mesmo!